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28/06/2013

"SEQUESTRO RELÂMPAGO". ARTIGO 158, §3º, DO CÓDIGO PENAL.

Caros leitores, passo a destacar alguns pontos acerca da figura típica vulgarmente denominada "sequestro relâmpago", com previsão no artigo 158, §3º, do CP, parágrafo inserido pela Lei 11.923/2009 (http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2007-2010/2009/Lei/L11923.htm).

Art. 158 - Constranger alguém, mediante violência ou grave ameaça, e com o intuito de obter para si ou para outrem indevida vantagem econômica, a fazer, tolerar que se faça ou deixar fazer alguma coisa:
Pena - reclusão, de quatro a dez anos, e multa
... 
§ 3o  Se o crime é cometido mediante a restrição da liberdade da vítima, e essa condição é necessária para a obtenção da vantagem econômica, a pena é de reclusão, de 6 (seis) a 12 (doze) anos, além da multa; se resulta lesão corporal grave ou morte, aplicam-se as penas previstas no art. 159, §§ 2o e 3o, respectivamente (reclusão de 16 a 24 e 24 a 30 anos, respectivamente). 

Antes da inclusão do aludido parágrafo 3º, quando ocorria a restrição da liberdade da vítima aplicava-se o art. 157, §2º, V, do Código Penal:

Art. 157 - Subtrair coisa móvel alheia, para si ou para outrem, mediante grave ameaça ou violência a pessoa, ou depois de havê-la, por qualquer meio, reduzido à impossibilidade de resistência:
Pena - reclusão, de quatro a dez anos, e multa.
...
§ 2º - A pena aumenta-se de um terço até metade:
...
 V - se o agente mantém a vítima em seu poder, restringindo sua liberdade. 
Para uma distinção mais clara entre as duas figuras típicas, transcrevo a lição do nobre professor Guilherme de Souza Nucci:

"Quando o agente ameaça a vítima portando uma arma de fogo, exigindo a entrega do automóvel, por exemplo, cuida-se de roubo. A coisa desejada, afinal, esta à vista e à disposição do autor do roubo. Caso o ofendido se negue a entregar, pode sofrer violência, ceder e o agente leva o veículo do mesmo modo. Porém, no caso da extorsão, há um constrangimento, com violência ou grave ameaça, que exige, necessariamente, a colaboração da vítima. Sem esta colaboração, por maior que seja a violência efetivada, o autor da extorsão não obtém o almejado. Por isso, obrigar o ofendido a empreender saque em banco eletrônico é extorsão - e não roubo. Sem a participação da vítima, fornecendo a senha, a coisa objetivada (dinheiro) não é obtida. Logo, obrigar o ofendido, restringindo-lhe (limitar, estreitar) a liberdade, constituindo esta restrição o instrumento para exercer a grave ameaça e provocar a colaboração da vítima é exatamente a figura do art. 158, §3º, do Código Penal. Permanece o arti. 157, §2º, V, do Código Penal para a hipótese mais rara de o agente desejar o carro da vítima, ilustrando, levando-a consigo por um período razoável, de modo a se certificar da inexistência de alarme ou trava eletrônica. É um roubo, com restrição limitada da liberdade, de modo a garantir a posse da coisa, que já tem em seu abrigo. Entretanto, rodar com a vítima pela cidade, restringindo-lhe a liberdade, como forma de obter a coisa almejada, contando com a colaboração do ofendido, insere-se na extorsão mediante restrição à liberdade". (NUCCI, Guilherme de Souza. Manual de direito penal: parte geral: parte especial - 5ª ed. rev., atual. e ampl. - São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2009. p. 720).  

Outrossim, não se deve confundir o "sequestro relâmpago" com a figura da extorsão mediante sequestro (Art. 159 - Seqüestrar pessoa com o fim de obter, para si ou para outrem, qualquer vantagem, como condição ou preço do resgate), pois nesta última há restrição da liberdade da vítima em cárcere (cativeiro), situação que perdura até o pagamento do resgate.

Exemplos (esquema) para diferenciar os tipos penais em tela



Extorsão c/ restrição à liberdade
Roubo (c/ restrição limitada à liberdade)
Extorsão mediante sequestro
O agente trafega com a vítima pela cidade (restringindo a liberdade), exigindo que ela passe seu cartão de crédito em diversos estabelecimentos comerciais e, após, entrega os produtos comprados ao criminoso.
Nota-se a colaboração do ofendido.
O agente rouba o carro da vítima (depois de ameaçá-la ou agredi-la), levando-a consigo por alguns quilômetros, após deixando-a em local ermo, a fim de evitar que ela contate com a polícia.
O agente rapta a vítima, e a leva para uma residência, trancando-a no local, ato contínuo fazendo contato com familiares, exigindo pagamento de resgate.


Falhas do legislador

A doutrina, em grande parcela, aponta como notável falha do legislador não ter previsto no elenco dos crimes hediondos a extorsão com restrição à liberdade ("sequestro relâmpago") com resultado lesão grave ou morte. Vale lembrar, ainda, que a extorsão, a extorsão mediante sequestro e o roubo (daí latrocínio), quando qualificados pelo resultado morte, estão no rol dos crimes hediondos (somente com o resultado morte, lesão grave não - salvo na extorsão mediante sequestro).

Art. 1o São considerados hediondos os seguintes crimes, todos tipificados no Decreto-Lei no 2.848, de 7 de dezembro de 1940 - Código Penal, consumados ou tentados: (Redação dada pela Lei nº 8.930, de 1994) (Vide Lei nº 7.210, de 1984)
...
II - latrocínio (art. 157, § 3o, in fine); (Inciso incluído pela Lei nº 8.930, de 1994)

III - extorsão qualificada pela morte (art. 158, § 2o); (Inciso incluído pela Lei nº 8.930, de 1994)

IV - extorsão mediante seqüestro e na forma qualificada (art. 159, caput, e §§ lo, 2o e 3o). 

Classificação

Comum; formal; de forma livre; como regra, comissivo, instantâneo; material (de resultado); unissubjetivo; e plurissubsistente. 

Momento consumativo

STJ Súmula nº 96 - 03/03/1994 - DJ 10.03.1994

Extorsão - Vantagem Indevida - Dependência - Consumação
O crime de extorsão consuma-se independentemente da obtenção da vantagem indevida. 

Portanto, para a doutrina e jurisprudência, a extorsão consuma-se no momento em que a vítima cede ao constrangimento, passando a colaborar com o criminoso, mesmo que não chegue a entregar a coisa almejada. Contudo, considerando a extorsão com restrição à liberdade, a situação de cerceamento da liberdade da vítima deve ter ao menos iniciado.

Circunstâncias qualificadoras

Lesão corporal grave ou morte
... se resulta lesão corporal grave ou morte, aplicam-se as penas previstas no art. 159, §§ 2o e 3o, respectivamente (reclusão de 16 a 24 e 24 a 30 anos, respectivamente).

Está foi mais uma análise breve, perfunctória, sobre crime em espécie, estando o signatário cônscio do não exaurimento do tema, razão pela qual aguarda comentários suplementares, ou mesmo correções. 


SENADO APROVA CLASSIFICAÇÃO DE CORRUPÇÃO COMO CRIME HEDIONDO


*Paola Lima

Corrupção ativa e corrupção passiva podem em breve ser classificados como crimes hediondos. O Senado aprovou em Plenário nesta quarta-feira (26) o PLS 204/2011, do senador Pedro Taques (PDT-MT), que inclui delitos contra a administração pública como crimes hediondos, aumentando suas penas e dificultando a concessão de benefícios para os condenados.
O PLS 204 foi aprovado com emenda do senador JoséSarney (PMDB-AP) incluindo também o homicídio simples na lista de crimes hediondos. Com a mudança, os condenados pelos crimes citados não terão mais direito a anistia, graça, indulto e livramento mediante de fiança. Também se torna mais rigoroso o acesso a benefícios como livramento condicional e progressão de regime.A proposta foi votada à tarde, como parte da pauta legislativa prioritária, anunciada pelo presidente Renan Calheiros em resposta às manifestações realizadas no país nas últimas semanas. O projeto segue agora para apreciação da Câmara dos Deputados.
Relator da proposta em Plenário, o senador Alvaro Dias (PSDB-PR) explicou que a atual legislação dá respostas duras a quem comete crime contra a pessoa ou contra o patrimônio individual, mas é brando quando se trata de proteger os interesses difusos dos cidadãos e o patrimônio público, em crimes como concussão, corrupção passiva, corrupção ativa, peculato e excesso de exação.
- O resultado de tais crimes tem relevância social, pois pode atingir, em escala significativa, a depender da conduta, grande parcela da população. Com efeito, a subtração de recursos públicos se traduz em falta de investimentos em áreas importantes, como saúde, educação e segurança pública, o que acaba contribuindo, na ponta, para o baixo nível de desenvolvimento social - argumentou o senador.
Homicídio simples
Principal signatário da emenda que incluiu o homicídio simples como crime hediondo, José Sarney defendeu a medida destacando que o Brasil tem a “vergonhosa posição” de ser o país com maior número de homicídios proporcionais no mundo. O senador citou ainda pesquisa do Instituto Sangari que revela que 78% da população brasileira têm medo de ser assassinada.
- Se nós temos essa oportunidade de considerar crime hediondo, como eu acho que é justo, os da administração pública, como nós não temos condições de incluir aí na relação de crimes hediondos os crimes contra a vida, em primeiro lugar, o homicídio? – questionou.
O projeto inicial tornava hediondo somente os crimes de corrupção ativa e passiva e de concussão (quando o agente público exige vantagens para si ou para outrem). Por emenda, Alvaro Dias acrescentou os crimes de peculato (quando o agente público apropria-se de dinheiro, valor ou qualquer outro bem móvel, público ou particular) e de excesso de exação (quando o agente público exige tributo indevido ou usa meios abusivos para cobrança de tributos). Uma última emenda, dos senadores Wellington Dias (PT-PI) e Inácio Arruda (PCdoB-CE), incluiu na lista também o peculato qualificado.
Os crimes de corrupção ativa, passiva e de peculato têm pena de reclusão, de dois a doze anos, e multa. Para concussão, a pena é de reclusão de dois a oito anos e multa. Já o excesso de exação tem pena de reclusão, de três a oito anos, e multa. Homicídio simples tem pena de reclusão, de seis a 20 anos.
Projeto antigo
Autor da proposta original, Pedro Taques ressaltou que esta não foi uma “legislação de emergência”, apresentada apenas em função da mobilização popular das últimas semanas.
Este projeto é de 2011. Esse projeto já tinha parecer do senador Alvaro Dias [também relator da matéria na Comissão de Constituição e Justiça] há mais de um ano, só que, por oportunidade e conveniência, não havia sido colocado em pauta na comissão. Mas isso faz parte do processo legislativo - explicou.
O senador, entretanto, foi contrário à emenda que incluiu homicídio simples no projeto. Em sua avaliação, apesar de a medida ser correta no mérito, não “cabia” no projeto que tratava apenas de crimes contra a administração pública.

25/06/2013

CONCEITO DE CRIME

Há três correntes principais:

Formal

Crime é todo fato que a lei expressamente proibir. Em outras palavras, dispensa qualquer análise acerca dos elementos que compõem a ação delituosa.

Material

Ao contrário do formal, preocupa-se com o conteúdo do crime, sobretudo com o resultado prejudicial à vítima ou à própria sociedade, definindo como crime os fatos que possam atingir um determinado bem jurídico. O conceito de crime material, portanto, antecede a própria lei penal, pois antevê condutas que possam comprometer um bem jurídico. Destarte, não compatível com o princípio da legalidade - nulla poena sine lege praevia.

Dogmático ou analítico

É o mais completo e adequado, por isso adotado em nosso ordenamento jurídico. Define crime como todo fato típico, ilícito/antijurídico e culpável, dividindo os elementos estruturais do delito.

Este foi apenas um breve resumo para estudos, entretanto, pretendo retomar o tema (que compõe a teoria geral do crime) em outras postagens.

Fonte: Apontamentos de aulas teóricas. 

24/06/2013

LEI DÁ A DELEGADOS PODER REQUISITÓRIO CONFERIDO AO MP (Lei n. 12.830/13).


Publicada em 21 de junho de 2013, a lei que aborda a investigação conduzida pelos chefes da polícia judiciária, os delegados de Polícia. Entre a tramitação do PLC 132/2012 e sua concretização na mencionada lei, poucas alterações houve no texto, mas com a confirmação de importantes garantias à persecução realizada pela polícia judiciária.
Dada a relevância do diploma legal, convém tecer comentários sobre o tema de forma analítica.
Artigo 1º Esta Lei dispõe sobre a investigação criminal conduzida pelo delegado de polícia.
A presente lei, como assinala a introdução do artigo primeiro, aborda aspectos atinentes à investigação conduzida pelo delegado de polícia, única autoridade policial com atribuição para proceder a investigações de crimes (não-militares). Assim, delegados das Polícias Civil e Federal têm alguns aspectos de sua atividade regulados pela presente lei.
Artigo 2º As funções de polícia judiciária e a apuração de infrações penais exercidas pelo delegado de polícia são de natureza jurídica, essenciais e exclusivas de Estado.
A lei reafirma características de que é dotada a atividade desenvolvida pela polícia judiciária. A natureza jurídica pode ser apontada por diversos motivos: a coordenação de investigações é dedicada a delegados de polícia, cujo cargo é privativo de bacharel em direito. Para além disso, os concursos públicos a que são submetidos os candidatos possuem nível de exigência típico de outras carreiras jurídicas como Ministério Público, magistratura e Defensoria Pública. O exercício da atividade profissional, diariamente, é praticado mediante aplicação de leis, entendimento e interpretações jurídicas, utilizando-se de todos os instrumentos dispostos na Constituição Federal, Código Penal, Código de Processo Penal, Leis Penais e Processuais Penais extravagantes, além de pontos de contato com o Código Civil, Estatuto da Criança e do Adolescente, além de legislação típica do Direito Administrativo. É função jurídica por natureza.
No que diz respeito à essencialidade, a polícia judiciária é peça fundamental na estrutura do Estado Democrático do Direito. Se o Estado se apresenta na figura do julgador (juiz), do acusador (promotor de Justiça) e do defensor (advocacia pública e privada), é o Estado investigador (delegado de polícia nos crimes não- militares) que se preocupa em apurar a materialidade e a autoria de delitos. Estas funções são extremamente importantes e possuem foco de atuação próprio, proporcionando uma concentração específica de funções que não se deixam contaminar pelos atos próprios de outras instituições ou poderes. O sistema jurídico torna-se multifuncional, havendo um plexo de especializações que se interligam e se complementam através de cada instituição que figura no regime democrático (Poder Judiciário, Ministério Publico, advocacia, polícia judiciária).
Na verdade, este dispositivo parece ser inspirado nos dizeres já cristalizados no artigos 127 à 133 da CF, que mencionam as instituições que exercem funções essenciais. Logo, a investigação levada a cabo pela polícia judiciária é atividade essencial ao Estado Democrático de Direito, pois é a forma pela qual o Estado pode interferir na intimidade, privacidade, limitando certos direitos e garantias por período de tempo em que é necessária a apuração de uma infração penal. Esta atividade é regrada pela Constituição Federal, primeiramente, e pelas minúcias da legislação infraconstitucional.


De outro lado, a investigação é exclusiva de Estado, pois não é dada ao particular a limitação de direitos e garantias individuais e coletivas para apurar o cometimento de infrações penais. O uso da força e, não raro, a limitação ao direito de liberdade são tarefas cometidas precipuamente ao Estado, o qual elegeu o delegado de polícia como primeiro avaliador sobre a legitimidade de detenção de seus cidadãos (decisão sobre a autuação de flagrante delito). Como referido, o Estado-investigador não delega tal tarefa a um particular, mas a um bacharel em direito, aprovado em concurso público, que exerce o cargo de delegado de polícia, a quem compete dirigir a atividade da polícia judiciária (artigo 144, CF).
Parágro 1º Ao delegado de polícia, na qualidade de autoridade policial, cabe a condução da investigação criminal por meio de inquérito policial ou outro procedimento previsto em lei, que tem como objetivo a apuração das circunstâncias, da materialidade e da autoria das infrações penais.
Reafirma-se quem é autoridade policial: o delegado de polícia. Não existe qualquer outra autoridade considerada “policial”. Os escalões da Polícia Militar que têm atribuição para investigar crimes militares não são considerados como autoridades policiais em sentido técnico, pois esta designação é própria daquele que conduz investigações atinentes à condução da polícia judiciária.
De outro lado, a lei estabelece que as investigações criminais conduzidas pela autoridade policial serão feitas por meio de inquérito policial ou outro procedimento previsto em lei. O inquérito policial, previsto no artigo 4º do Código de Processo Penal, é o procedimento investigativo por excelência. É o principal instrumento à disposição do Estado-investigação. Entretanto, não é o único. Quanto à expressão “ou outro procedimento previsto em lei”, que recebeu algumas críticas quando da tramitação do PCL 132 em função de sua alegada abstração, suscitando-se a sua inconstitucionalidade, tem-se que o vício não se manifesta. A lei não necessita trazer um rol fechado de instrumentos de investigação. Restou claro, com isto, que a polícia judiciária dispõe de outros meios de investigação que não necessariamente precisam estar previstos na presente lei. Exemplo disto é a possibilidade de apuração de fatos utilizando a verificação prévia de informações (VPI), prevista no artigo 5.º, parágrafo 3º do CPP, bem como do Termo Circunstanciado, previsto na Lei 9.099/1995. O que faz a lei, com muita propriedade, é dizer que o inquérito policial não é o único instrumento de que se vale a polícia judiciária, podendo valer-se de outros, desde que devidamente previstos em lei. Isto preserva o princípio da legalidade a que está adstrita a Administração Pública, bem como preserva garantias constitucionais dos cidadãos, os quais só podem ser investigados e privados de seus bens e direitos, ainda que temporariamente, através de expediente previsto expressamente no ordenamento jurídico.
Parágrafo 2º Durante a investigação criminal, cabe ao delegado de polícia a requisição de perícia, informações, documentos e dados que interessem à apuração dos fatos.
A lei traz um grande instrumento para a atuação da autoridade policial. O poder requisitório de perícias, documentos, informações e dados é de extrema importância diante da celeridade requerida na apuração de certas infrações criminais. Antes da lei, a polícia judiciária limitava-se a requerer dados e informações de forma não-coercitiva. Somente com a colaboração espontânea e, muitas vezes, decorrente do desconhecimento sobre a falta de obrigatoriedade é que havia entrega de documentos e dados para as investigações. Não há que se olvidar, entretanto, as medidas que, não obstante o poder de requisição, estão sujeitas à prévia autorização judicial, como por exemplo, a quebra de sigilo de dados bancários e telefônicos.
Não há relação de subordinação, mas sim, de atendimento a uma ordem emanada de autoridade estatal com poderes legalmente previstos para tanto. Delegados de polícia têm, agora, o poder requisitório que já é conferido à magistratura, Ministério Público e Defensoria Pública.
Cria-se, com isto, antes de mero instrumento de coerção, uma expediente vocacionado a imprimir celeridade e eficiência na apuração de infrações penais. A implicação do não-atendimento de uma requisição no prazo estipulado será a possibilidade de enquadramento pelo crime de desobediência.
Parágrafo 3º (VETADO) O delegado de polícia conduzirá a investigação criminal de acordo com seu livre convencimento técnico-jurídico, com isenção e imparcialidade.
Este artigo foi vetado. Nas razões do veto, expôs-se que a redação do parágrafo poderia conduzir a uma desarmonia com os demais encarregados da persecução penal. Entende-se que este receio não é procedente encontra uma interpretação constitucional adequada.
O objetivo da norma era somente o de cristalizar o que já é uma realidade jurídica: a independência que possui o delegado de polícia na condução da investigação criminal. Decorre, justamente, da posição de carreira jurídica que é reconhecida à atividade exercida pela autoridade policial. Desta feita, o enquadramento dos fatos apresentados à autoridade policial é por ele realizado com total independência e segundo o seu livre convencimento baseado na sua instrução jurídica. Assim como o Ministério Público não está adstrito à capitulação legal e às conclusões exaradas pela autoridade policial em seu relatório final, concluindo pelo indiciamento ou não, podendo oferecer denúncia com entendimento totalmente diverso, a recíproca é verdadeira. Da mesma forma o magistrado, no recebimento da denúncia, não está vinculado à capitulação dada pelo promotor de Justiça. É a independência existente e necessária entre os atores do devido processo legal.
De outro lado, a isenção e imparcialidade decorrem dos princípios e das novas matizes que têm sido emprestadas à investigação policial. A investigação não se presta, num contexto democrático, a identificar, necessariamente, um culpado. Não se busca imputar a autoria de um crime a qualquer custo. O que faz a autoridade policial é apurar fatos e suas circunstâncias. A imparcialidade é condutora de um procedimento não tendencioso, livre de direcionamentos, preconceitos e demais vícios que possam macular a idoneidade da investigação. Ainda que seja procedimento dispensável e informativo, cujos vícios não contaminam a Ação Penal, a tendência do inquérito policial ou outro meio de investigação é de que seja praticado com a maior observância possível de garantias constitucionais. Até mesmo porque, ainda que não seja processo, trata-se de procedimento administrativo e, como tal, deve obedecer aos princípios comuns à administração pública. Dentre eles, está o princípio da impessoalidade, o qual possui afinidade intrínseca com a imparcialidade. Com isto, o inquérito policial torna-se um instrumento de investigação de fatos e circunstâncias, podendo, de acordo com o convencimento técnico e jurídico do delegado de polícia, gerar ou não o indiciamento. Não existe a decorrência lógica de se imputar a responsabilidade por um fato a uma determinada pessoa. O inquérito é instrumento de busca de verdade e não de imputação irresponsável para que sempre se tenha a responsabilização de alguém por um fato que cause desconforto ou mesmo clamor social. Como as investigações concretizadas por meio de atos e atos administrativos, eles devem ser praticados em observância aos princípios da impessoalidade, legalidade, publicidade, motivação e interesse público, devendo o delegado de polícia atuar com independência para preservar estes cânones.
Um aspecto importante a se averiguar (e que deve ter motivado o veto do parágrafo 3º) é se o livre convencimento baseado no conhecimento técnico e jurídico da autoridade policial retira o poder de requisição do Ministério Público ou pelo magistrado. Há que se verificar dois momentos distintos.


Um primeiro momento diz com relação à requisição de instauração de procedimento para a apuração de determinado delito. Neste caso, tem-se que a autoridade policial somente pode se recusar em caso de manifesta ilegalidade ou diante da ausência de informações necessárias para a instauração. Fora destes casos, a instauração é devida.
Entretanto, durante toda a tramitação do inquérito policial, a autoridade policial conduzirá as investigações segundo o seu juízo de conveniência, oportunidade (discricionariedade administrativa) e livre convencimento sobre as circunstâncias apuradas. Não há interferência do requisitante. Mesmo o Ministério Público, destinatário da prova e titular da Ação Penal, não poderá interferir durante a tramitação do inquérito policial, requisitando diligências que venham a confirmar a existência de crime que motivou a requisição de instauração de inquérito. Até porque é equivocado requisitar instauração de procedimento apontando o crime praticado. O que pode haver é mera sugestão, indicação do cometimento, em tese, de determinado ilícito penal. Mas o juízo efetivo, neste momento de persecução, é do condutor do inquérito policial.
Contudo, após a conclusão do inquérito policial, com remessa do procedimento ao Poder Judiciário e a conclusão acerca do indiciamento, encerra a presidência do inquérito policial e o futuro do expediente estará em fase de análise pelo Ministério Público. Neste momento, pode o representante ministerial oferecer denúncia, requerer arquivamento ou requisitar diligências. Estas diligências requisitadas não estão sob o âmbito de discricionariedade do delegado de polícia, ou seja, já não lhe é possível sustentar o livre convencimento técnico e jurídico, mesmo que o Ministério Público, com a requisição, esteja buscando configurar crime com cuja existência, seja durante a instauração seja na conclusão do procedimento, não concordou a autoridade policial. Vigora o livre convencimento do titular da Ação Penal.
Desta forma, tem-se que uma vez requisitada a instauração de procedimento, o delegado de polícia somente pode não atender em caso de manifesta ilegalidade e ausência de informações para a instauração. Do contrário, deverá instaurar o procedimento, tendo liberdade quanto à capitulação típica. Durante a investigação, está imune a requisições que venham interferir no modo de conduzir a investigação. Uma vez encerrado o inquérito ou Termo Circunstanciado, deverá atender a eventuais requisições ministeriais. Com isto, preserva-se a autonomia pretendida pela lei à autoridade policial sem ferir o poder de requisição de membro do Ministério Público ou magistratura e, sobretudo, o convencimento necessário ao titular da Ação Penal. Daí porque equivocado o veto deste parágrafo 3º.
Entretanto, como visto, isto não gerará maiores problemas em função da própria natureza jurídica da função do delegado de polícia, pois tudo o que a autoridade policial faz ou deixa de fazer deve ser devidamente fundamentado, permitindo o devido controle que inspira o sistema de freios e contrapesos.
Parágrafo 4º O inquérito policial ou outro procedimento previsto em lei em curso somente poderá ser avocado ou redistribuído por superior hierárquico, mediante despacho fundamentado, por motivo de interesse público ou nas hipóteses de inobservância dos procedimentos previstos em regulamento da corporação que prejudique a eficácia da investigação.
O dispositivo legal demonstra o avanço pretendido pelo legislador em conferir autonomia e independência aos delegados de polícia, salvaguardando-o de qualquer ingerência institucional ou política. Busca-se trazer maior transparência à atuação tanto de autoridades policiais quanto de seus superiores hierárquicos, impedindo afastamentos de investigações pela determinação de troca na presidência de procedimentos ou de avocação. Ocorre que as polícias judiciárias sempre foram muito criticadas pela ausência de autonomia e porque são vinculadas ao poder Executivo. Nesta seara, foram apontadas como carecedoras de imparcialidade devido a eventuais pressões políticas.
Com a nova lei, fica preservada uma atuação firme, isenta e livre de vicissitudes externas, algo que já se verifica diuturnamente com a investigação e prisão de pessoas bem situadas socialmente, como prefeitos e vereadores, após investigações levadas a cabo pelas polícias judiciárias. Vale lembrar que a presente lei declara a carreira de delegado de olícia como “de Estado”, sendo que a polícia judiciária, por ele conduzida, não pode ser tratada como polícia “de governo”, motivada por convicções ideológico-partidárias. Polícia judiciária é polícia investigativa, técnica, que age sob coordenação de um agente público que exerce carreira de Estado. Assim, não caberão afastamentos da presidência das investigações por motivos escusos, mas mediante despacho fundamentado. Somente no caso de interesse público declarado ou quando for apontada inobservância de procedimentos previstos em regulamento da corporação e que prejudiquem a eficácia da investigação é que poderá ocorrer o afastamento. Confere-se respeito aos princípios da impessoalidade, interesse público e publicidade. 
Parágrafo 5º A remoção do delegado de polícia dar-se-á somente por ato fundamentado.
A previsão também visa coibir afastamentos da presidência de procedimentos investigativos. Mais: visa impedir que a remoção seja utilizada como instrumento de punição ou de perseguição contra delegados de polícia. Como se daria uma investigação se, por interesses escusos, uma autoridade policial fosse impelida a mudar de cidade, desestabilizando sua rotina familiar e, quem sabe, removida para uma cidade distante, com parca infraestrutura, como forma de “punição” pelo não atendimento de pedidos indecorosos ou orientação odiosa por parte de algum superior hierárquico que não esteja irmanado com princípios basilares da administração pública como o da impessoalidade? Tal previsão impede o uso indiscriminado do instituto da remoção, devendo sempre ser realizada de forma fundamentada, em observância ao princípio da impessoalidade, motivação e da publicidade.
Parágrafo 6º O indiciamento, privativo do delegado de polícia, dar-se-á por ato fundamentado, mediante análise técnico-jurídica do fato, que deverá indicar a autoria, materialidade e suas circunstâncias.
A partir da existência deste dispositivo, o indiciamento deverá ser sempre motivado. Não bastará um simples termo de indiciamento, com a qualificação do indiciado e a descrição do crime pelo qual é investigado. Deverá existir a análise dos fatos e sua repercussão jurídica. Esta análise, diga-se de passagem, não necessita ser exauriente, a exemplo do relatório final do inquérito policial. Contudo, elementos mínimos devem ser considerados para que haja o indiciamento, ato pelo qual a pessoa adquire status jurídico de “investigado”. Esta previsão legal é positiva em todos os sentidos. Primeiro, porque permite à autoridade policial expor o conhecimento técnico e jurídico enquanto membro de carreira de Estado e de natureza jurídica. Segundo, porque garante lisura ao procedimento investigativo, com a indicação das razões por que alguém é considerado como investigado. O inquérito policial é ato de constrangimento, de interferência em garantias como a intimidade, privacidade e, não raro, à propriedade de bens e liberdade. Desta forma, a condição de investigado não pode ser imposta imotivadamente ou com base em um suporte probatório pífio. A jurisprudência bem ilustra a freqüente concessão de Habeas Corpus determinando o arquivamento de inquéritos policiais pela conclusão de existência de constrangimento ilegal contra pessoas que têm sua condição jurídica alterada sem a devida necessidade ou fundamentação legítima. Desta forma, as garantias da presunção de inocência e preservação da intimidade são melhor tuteladas. A lei, entretanto, não mencionou qual deve ser o momento do indiciamento. Entende-se que o indiciamento deverá ser feito segundo um juízo de conveniência e oportunidade pela autoridade policial, com base nos elementos de prova que forem sendo coligidos, pois, no atual contexto do Código de Processo Penal, não há previsão legal sobre o momento correto de praticá-lo, bem como não determina as conseqüências procedimentais e jurídicas que decorreriam com relação ao investigado.
Artigo 3º O cargo de delegado de polícia é privativo de bacharel em Direito, devendo-lhe ser dispensado o mesmo tratamento protocolar que recebem os magistrados, os membros da Defensoria Pública e do Ministério Público e os advogados.
A previsão deste artigo apenas reafirma o que toda a lei diz em linhas gerais: a carreira de delegado de polícia é de Estado e possui natureza jurídica. Além disso, o delegado de polícia é inamovível, garantia que somente pode ser relativizada por ato fundamentado, não podendo ser afastado da presidência de investigações senão por interesse público ou procedimento irregular. Estas são características que também são conferidas a outras carreiras jurídicas, como à magistratura, ao Ministério Público e Defensoria e advogados. Nesta mesma linha de idéias, percebe-se que todos os citados constam expressamente no artigo 127 a 134 da Constituição Federal, ou seja, funções essenciais à administração da Justiça. Neste aspecto, a lei perdeu a oportunidade de não apenas dizer que a policia judiciária é função essencial, mas função essencial à Justiça, até mesmo para evitar discussões sobre o real significado da essencialidade. Entretanto, tem-se que justamente esta é a intenção do legislador, porque quando mencionou a prerrogativa de tratamento protocolar igual ao dos membros do Ministério Público, Advocacia Pública, Defensoria Pública e Advogados, equiparou-os diante da essencialidade da função e de que — à exceção da advocacia privada — são consideradas como carreiras de Estado.
De resto, o tratamento protocolar correto aos delegados de polícia será o mesmo dispensado aos membros da magistratura, Ministério Público, Defensoria Pública e advocacia. Desta feita, tanto “Excelência” é o tratamento protocolar adequado, conforme apontam as regras da língua portuguesa. Ressaltando o verdadeiro foco da intenção legislativa, expressa-se, mais uma vez, a noção de que, enquanto carreira jurídica, essencial e de Estado, ostenta a mesma importância de outras que lhes são similares. Há diferenças de atribuições constitucionais, mas não de hierarquia ou importância.
Artigo 4º Esta Lei entra em vigor na data de sua publicação.
A lei está vigendo desde 21 de junho de 2013.
Comentários finais


Como se percebe, a lei trata de matéria administrativa e processual-penal. Tem implicações junto ao Código de Processo Penal, mas também traz conseqüências para os regimentos internos das corporações policiais. Crê-se, inclusive, que o reconhecimento das garantias nela mencionadas teria maior envergadura se tivesse se concretizado em âmbito constitucional, a exemplo da magistratura e do Ministério Público. Entretanto, sabe-se que as dificuldades e cenários políticos, em determinados momentos, não permitem que mudanças mais densas e complexas como as que se dão, em tese, com as emendas constitucionais.

De qualquer sobre, a maior virtude do diploma legal foi conceder as garantias mencionadas aos delegados de polícia enquanto dirigentes da polícia judiciária. Com isto, o Estado-investigação blindou-se para exercer o seu mister com maior eficiência. Independência funcional e inamovibilidade são prerrogativas essenciais ao desempenho de uma função tão complexa e importante para o regime democrático como a atividade investigativa. Como resultado, esperam-se investigações aptas a apurar responsabilidades em todos os níveis sociais. E isto, sem dúvida, é mais do que positivo, é necessário.

*Delegado de Polícia do Rio Grande do Sul. Professor Universitário.

Disponível em: <http://www.conjur.com.br/2013-jun-24> Acesso em: 25 junho 2013

23/06/2013

CONCURSO DE CRIMES (síntese p/ estudos)

Antes de tratarmos das formas de concurso de crimes, curial compreendermos os sistemas de aplicação de penas existentes, como segue:
SISTEMAS DO CONCURSO DE CRIMES
Sistema da acumulação material (adotado pela legislação brasileira)
Quando da concretização de mais de um resultado típico, todos esses resultados devem ser punidos, portanto, somando-se as penas de cada um deles.
Geralmente ocorre quando há concurso material de crimes (cf. veremos adiante), entretanto,  alguns tipos penais já trazem esta regra expressa, como por exemplo:
Injúria Real

Art. 140 - Injuriar alguém, ofendendo-lhe a dignidade ou o decoro:
Pena - detenção, de um a seis meses, ou multa.
... 
§ 2º - Se a injúria consiste em violência ou vias de fato, que, por sua natureza ou pelo meio empregado, se considerem aviltantes:Pena - detenção, de três meses a um ano, e multa, além da pena correspondente à violência. 
Percebam que além da sanção imposta ao delito de injúria real (sobre injúria real veremos em outro post), o dispositivo em questão prevê a soma com a pena prevista para o emprego de violência (lesão corporal). Aqui, quando o legislador menciona a hipótese de soma de pena pelo emprego de violência, trata especificamente da lesão corporal, visto que se a conduta materializar a contravenção penal denominada vias de fato (art. 21 da Lei n.3688/41 - LCP), esta será absorvida pelo delito de injúria real (princípio da consunção), como veremos em outro post específico sobre o tema.      
Em síntese, o sistema de acumulação material determina a punição de todos os resultados causados pela pluralidade de condutas, somando-se as penas cominadas a cada uma dessas condutas, sendo que alguns dispositivos penais já trazem esta regra expressa, mesmo que haja, nestes casos, apenas uma conduta (ex 2.: art. 344, CP - coação no curso do processo - reclusão de 1 a 4 anos e multa + a sanção correspondente à violência - uma ação / mais de um resultado = soma de penas). 
Sistema da exasperação da pena (adotado pela legislação brasileira)
Sistema benéfico ao acusado. Aplica-se ao concurso formal de crimes (que veremos adiante), quando há uma única conduta com dois ou mais resultados, punindo-se o mais grave e apenas uma parte das penas dos demais crimes (de 1/6 a metade).
Sistema da absorção
Havendo concurso de crimes, pune-se apenas o mais grave, que absorve os demais delitos. É o sistema adotado em Portugal. A legislação brasileira não o adotou, mas a jurisprudência o aplica quando diante de conflito de normas opta pela aplicação do princípio da consunção (crime-fim absorve o crime-meio).
Sistema da acumulação jurídica
Adotado na Espanha. Faz uma ponderação entre as penas, somando-as, porém posteriormente triplicando a mais grave. Exemplo: 5 anos + 5 anos + 3 anos + 1 ano + 2 anos = 16 anos = 15 anos, ou seja, o triplo da pena mais grave (que foi 5 anos). 
Este sistema não é adotado no Brasil.

Vamos agora às formas de concursos de crimes e suas peculiaridades: 
CONCURSO MATERIAL 
Art. 69. Quando o agente, mediante mais de uma ação ou omissão, pratica dois ou mais crimes, idênticos ou não, aplicam-se cumulativamente as penas privativas de liberdade em que haja incorrido. No caso de aplicação cumulativa de penas de reclusão e de detenção, executa-se primeiro aquela.
No concurso material o agente exerce duas ou mais condutas, produzindo dois ou mais resultados, idênticos (concurso material homogêneo) ou não (concurso material heterogêneo).
Exemplo: Duplo homicídio, contra vítimas distintas, sem continuidade delitiva (em outras palavras, não pode ter matado as duas pessoas com um único disparo, pois nesse caso teríamos um concurso formal imperfeito, sobre o qual discorreremos mais adiante).
Aplicação da pena
Primeiramente o juiz individualiza cada uma das penas, aplicando-as separadamente (com observação das qualificadoras, atenuantes/agravantes, minorantes/majorantes - critério trifásico - art. 68 do CP) depois, ele faz a soma.
IMPORTANTE: A soma das penas não pode ultrapassar o limite de 30 anos. Por isso, em caso de pena superior à aludida, o juiz atenuará, o que denomina-se concurso material moderado
Art. 75/CP - O tempo de cumprimento das penas privativas de liberdade não pode ser superior a 30 (trinta) anos.
STF Súmula nº 715/ STFA pena unificada para atender ao limite de trinta anos de cumprimento, determinado pelo art. 75 do Código Penal, não é considerada para a concessão de outros benefícios, como o livramento condicional ou regime mais favorável de execução. 

Cabimento de fiança

Cabe fiança, desde que as penas mínimas somadas não sejam superiores a 2 (dois) anos.

STJ Súmula nº 81 - 17/06/1993 - DJ 29.06.1993
Fiança - Concurso Material - Soma das PenasNão se concede fiança quando, em concurso material, a soma das penas mínimas cominadas for superior a dois anos de reclusão.

CONCURSO FORMAL

Art. 70/CP - Quando o agente, mediante uma só ação ou omissão, pratica dois ou mais crimes, idênticos ou não, aplica-se-lhe a mais grave das penas cabíveis ou, se iguais, somente uma delas, mas aumentada, em qualquer caso, de um sexto até metade (concurso formal perfeito - grifo meu). As penas aplicam-se, entretanto, cumulativamente, se a ação ou omissão é dolosa e os crimes concorrentes resultam de desígnios autônomos, consoante o disposto no artigo anterior (concurso formal imperfeito - grifo meu). 

Ocorre quando o agente, mediante uma única ação ou omissão provoca dois ou mais resultados típicos, idênticos (concurso formal homogêneo) ou não (concurso formal heterogêneo). Nesses casos, o juiz aplicará a pena mais grave (ou escolherá uma das penas mais graves se forem idênticas), acrescida de 1/6 a metade, pelo sistema da exasperação que vimos anteriormente.

Concurso formal perfeito (ideal, normal ou próprio)

Os resultados decorrem de um único desígnio (plano/propósito). 

Exemplo n.1: Agente que subtrai cinco produtos de um supermercado.

Exemplo n.2: Motorista que faz ultrapassagem de risco (c/ dolo eventual), causando acidente e matando 20 (vinte) pessoas.


Concurso formal imperfeito (anormal ou impróprio)
Resultados decorrentes de uma pluralidade de desígnios, sempre com dolo. 
Ex. (clássico exemplo de Basileu Garcia): Agente que enfileira suas vítimas e as mata com um único tiro de arma potente.
Aplicação da pena
Concurso formal perfeito: Exasperação da pena (como já vimos)
Concurso formal imperfeito: Sistema da cumulação das penas, como no concurso material, tendo em vista que o agente age com animus de provocar uma pluralidade de resultados, não sendo merecedor da exasperação das penas. 

CRIME CONTINUADO (ou continuidade delitiva)
Art. 71/CP – Quando o agente, mediante mais de uma ação ou omissão, pratica dois ou mais crimes da mesma espécie e, pelas condições de tempo, lugar, maneira de execução e outras semelhantes, devem os subseqüentes ser havidos como continuação do primeiro, aplica-se-lhe a pena de um só dos crimes, se idênticas, ou a mais grave, se diversas, aumentada, em qualquer caso, de um sexto a dois terços.
Se dá quando o agente, mediante duas ou mais ações ou omissões, causa dois ou mais resultados da mesma espécie, em condições de tempo, lugar e modo de execução que mostram que um delito é continuação do outro.
Exemplo: O agente passa em vários estabelecimentos, praticando furtos, no mesmo dia, em continuidade.
Natureza jurídica
Teorias:
1ª) Unidade real: Todos os crimes formam um só.  
2ª) Mista: A pluralidade de crimes continuados formam outro tipo de delito. 
3ª) Ficção jurídica (adotada no Brasil): Para aplicação da pena, todos os crimes configuram um só

Teorias sobre a demonstração do crime continuado:
1ª) Subjetiva: O agente tem que demonstrar que agiu com unidade de desígnios, com propósito único (Neste sentido: Zaffaroni e outros, também o STJ).
2ª) Objetiva (adotada no Brasil): Não exige a demonstração de ter agido com unidade de desígnios, mas somente a demonstração dos requisitos objetivos (ter cometido o crime em semelhantes condições de tempo, lugar e modo (Sustentam esta tese: Feuerbach, Mezger, Von Hipple, Eduardo Corrêa, Luiz Flávio Gomes, entre outros).
3ª) Objetivo-subjetiva: Exige tanto a prova da ação por unidade de desígnios, como a prova dos requisitos objetivos, que são:
a) Crimes da mesma espécie: Conforme doutrina majoritária, são os previstos no mesmo tipo penal, independentemente da forma (simples, qualificada ou privilegiada).
b) Condições semelhantes de tempo: De acordo com a jurisprudência, prazo não superior a 30 (trinta) dias entre o cometimento das várias condutas delituosas. 
c) Condições semelhantes de lugar: Os delitos devem ter sido perpetrados na mesma comarca, ou em comarcas vizinhas, pois se tiverem sido praticados em comarcas distantes, desaparecerá a continuidade delitiva.
d) Modo de execução semelhante: Diz respeito ao modus operandi. Exemplo: Vários furtos praticados por meio de escalada (que também qualifica o crime, vide art. 155, §4º, II do CP).
Contagem para a prescrição
Autônoma, veja:
Art. 119 - No caso de concurso de crimes, a extinção da punibilidade incidirá sobre a pena de cada um, isoladamente.

Espécies de crime continuado
Crime continuado genérico ou simples
Aquele está previsto no caput do art. 71 do CP, ou seja, quando os crimes em continuidade são perpetrados sem violência ou grave ameaça, independentemente de serem tentados ou consumados.
Crime continuado específico ou qualificado
Previsto no parágrafo único do artigo 71 do CP, quando os crimes dolosos em continuidade delitiva são cometidos violência ou grave ameaça contra vítimas diferentes.
 Art. 71/CP...
Parágrafo único. Nos crimes dolosos, contra vítimas diferentes, cometidos com violência ou grave ameaça à pessoa, poderá o juiz, considerando a culpabilidade, os antecedentes, a conduta social e a personalidade do agente, bem como os motivos e as circunstâncias, aumentar a pena de um só dos crimes, se idênticas, ou a mais grave, se diversas, até o triplo, observadas as regras do parágrafo único do art. 70 e do art. 75 deste Código
Aplicação da pena
De 1/6 a 2/3 nos crimes idênticos, ou a pena mais grave se crimes distintos, aumentada de 1/6 a 2/3, isto nos casos do artigo 71 (crime continuado). Nos casos do art. 71, p.ú. (crime continuado específico), aplicar-se-á na forma sobredita, com aumento de até o triplo (observando-se o p.ú. do art. 70 e o art. 75, ambos do CP).
IMPORTANTE:
Continuidade delitiva em crimes contra a vida
STF Súmula nº 605 - 17/10/1984 - DJ de 29/10/1984, p. 18113; DJ de 30/10/1984, p. 18201; DJ de 31/10/1984, p. 18285.Não se admite continuidade delitiva nos crimes contra a vida.

Distinção entre crime continuado e crime habitual
No crime continuado cada ato é punível isoladamente, isto é, cada ato caracteriza um delito acabado. Já no crime habitual, os atos isoladamente não materializam o delito, apenas uma parte do iter criminis.

Fonte: NUCCI, Guilherme de Souza. Manual de Direito Penal: parte geral: parte especial - 5ª. ed. rev., atual. e ampl. - São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2009.

21/06/2013

LEI 12.830/2013 ENTROU EM VIGOR HOJE

Entrou em vigor hoje a Lei n. 12.830/2013, que dispõe sobre a investigação criminal conduzida pelo delegado de polícia.

Em breve postarei comentários sobre a aludida legislação. Por ora, segue o texto normativo integral, para análise dos leitores:


LEI Nº 12.830, DE 20 DE JUNHO DE 2013Dispõe sobre a investigação criminal conduzida pelo delegado de polícia.
A PRESIDENTA DA REPÚBLICAFaço saber que o Congresso Nacional decreta e eu sanciono a seguinte Lei:
Art. 1º Esta Lei dispõe sobre a investigação criminal conduzida pelo delegado de polícia.
Art. 2º As funções de polícia judiciária e a apuração de infrações penais exercidas pelo delegado de polícia são de natureza jurídica, essenciais e exclusivas de Estado.
§ 1º Ao delegado de polícia, na qualidade de autoridade policial, cabe a condução da investigação criminal por meio de inquérito policial ou outro procedimento previsto em lei, que tem como objetivo a apuração das circunstâncias, da materialidade e da autoria das infrações penais.
§ 2º Durante a investigação criminal, cabe ao delegado de polícia a requisição de perícia, informações, documentos e dados que interessem à apuração dos fatos.
§ 3º ( V E TA D O )
§ 4º O inquérito policial ou outro procedimento previsto em lei em curso somente poderá ser avocado ou redistribuído por superior hierárquico, mediante despacho fundamentado, por motivo de interesse público ou nas hipóteses de inobservância dos procedimentos previstos em regulamento da corporação que prejudique a eficácia da investigação.
§ 5º A remoção do delegado de polícia dar-se-á somente por ato fundamentado.
§ 6º O indiciamento, privativo do delegado de polícia, dar-se-á por ato fundamentado, mediante análise técnico-jurídica do fato, que deverá indicar a autoria, materialidade e suas circunstâncias.
Art. 3º O cargo de delegado de polícia é privativo de bacharel em Direito, devendo-lhe ser dispensado o mesmo tratamento protocolar que recebem os magistrados, os membros da Defensoria Pública e do Ministério Público e os advogados.
Art. 4ºEsta Lei entra em vigor na data de sua publicação.
Brasília, 20 de junho de 2013; 192º da Independência e 125º da República.
 DILMA ROUSSEFF
José Eduardo Cardozo   

01/06/2013

ENTREVISTA COM O PROFESSOR GUILHERME DE SOUZA NUCCI, SOBRE A PEC 37 E OUTROS TEMAS


Entrevista realizada pela revista Consultor Jurídico, em 14/04/13, cujo entrevistado foi o magistrado e doutrinador Guilherme de Souza Nucci, que respondeu à questões importantes (algumas polêmicas) de Direito Penal e Processual Penal, entre estas a questão da PEC n.37, confiram:


ConJur — O Ministério Público pode investigar?

Guilherme Nucci — Sozinho, não. O próprio promotor abre investigação no gabinete, colhe tudo, não dá satisfação para ninguém, e denuncia. Não. Não e não mesmo. As pessoas estão confundindo as coisas. Ninguém quer privar o Ministério Público de fazer seu papel constitucional. Estão divulgando essa questão de uma forma maniqueísta: pode ou não pode investigar? O MP é bom ou é mau? Isso não existe, é infantil. Ninguém é criança, para achar que é o legal ou o não-legal, o bacana ou o não-bacana. O que a gente tem de pensar é o seguinte: o Ministério Público é o controlador da Polícia Judiciária. Está na Constituição Federal. A Polícia Judiciária, também de acordo com a Constituição Federal, é quem tem a atribuição da investigação criminal.

ConJur — Privativamente, não é? A função dela é só essa.

Guilherme Nucci — A polícia existe para isso. Delegados, investigadores, detetives, agentes da Polícia Federal são pessoas pagas para investigar. E aí o que se diz? O MP não confia nesse povo, que é tudo corrupto, e nós vamos investigar sozinhos. Mas e as instituições são jogadas às traças assim? Eu não concordo. A atividade investigatória foi dada, no Brasil, ao delegado de polícia, concursado, bacharel em Direito. Não é um xerife, um sujeito da cidade que é bacana e que a gente elegeu xerife e que portanto não entende nada de Direito. Nossa estrutura é concursada, democrática, de igual para igual. Não existe isso de “ele é delegado, então ele é pior; eu sou promotor, sou melhor”. Tem corrupção? Então vamos em cima dela, vamos limpar, fazer o que for necessário. Agora, não podemos dizer que, porque a polícia tem uma banda corrupta, devemos tirar a atribuição dela de investigar e passar para outro órgão.

ConJur — Como se no Ministério Público não tivesse corrupção.

Guilherme Nucci — É o único imaculado do mundo? Não. Polícia investiga, MP acusa, juiz julga. MP investiga? Lógico. Junto com a polícia. A polícia faz o trabalho dela e o MP em cima, pede mais provas, requisita diligência, vai junto. Não tem problema o promotor fazer essas coisas. Ele deve fazer.

ConJur — O que não pode é ele fazer, sozinho, a investigação, é isso?

Guilherme Nucci — É. Dizer “eu quero fazer sozinho”. Por quê? Não registrar o que faz? Tenho ouvido dizer de muitas pessoas, tanto investigados quanto advogados, que contam: “Fiquei sabendo que eu estou sendo investigado”. Imagine você, ficar sabendo porque um vizinho seu foi ouvido. Aí ele chega pra você e fala: “Pedro, você está devendo alguma coisa? Aconteceu alguma coisa?”. “Não, por quê?”. “Porque um promotor me chamou ontem”. Aí você contata um advogado amigo seu e ele vai lá à Promotoria e vê se o promotor te mostra o que ele está fazendo. “Protocolado. Interno. É meu”. Veja, não é inquérito, portanto não está previsto em lei. Não tem órgão fiscalizador, não tem juiz, não tem procurador, ninguém acima dele.

ConJur — Só ele, de ofício, sem dar satisfações

Guilherme Nucci — Ele faz o que ele quiser. Ele requisita informações a seu respeito, ou testemunhas. Depois joga uma denúncia. Do nada. Mas cadê a legalidade?! O Supremo já decidiu: tem procuração, pode acompanhar qualquer inquérito, quanto mais protocolado na Promotoria. Então vamos jogar o jogo: quer investigar? Quero. Sozinho? É. Então passa uma lei no Congresso. No mínimo. O ponto é: se o MP quer investigar, tem de editar uma lei federal dizendo como é que vai ser essa investigação. Quem fiscaliza, quem investiga, de que forma, qual procedimento etc. para eu poder entrar com Habeas Corpus, se necessário. O que está errado, hoje, é o MP fazer tudo sozinho. Eu deixo isso bem claro porque cada vez que a gente vai para uma discussão vem o lado emocional. Não estamos vendo o mérito e o demérito da instituição. Estamos falando de um ponto só: o MP não pode investigar sozinho. Ponto final.

ConJur — Em matéria penal, deixando a política de lado, qual a importância do julgamento do mensalão?

Guilherme Nucci — O julgamento do mensalão trouxe para o Brasil um avanço muito grande em nível penal porque pela primeira vez o Supremo Tribunal Federal fixou uma pena em caráter originário pelos onze ministros. É uma coisa histórica. Estamos acostumados a ver o STF julgar recursos, Habeas Corpus, mas não fixando pena, como se fosse um juiz de primeiro grau. E dali tiramos várias lições.

ConJur — Que tipo de lição?

Guilherme Nucci — Coisas controversas, como fixar a pena-base, ou o que levar em consideração, concretamente, para essa escolha. Quanto vale um atenuante, quanto vale um agravante. O Supremo teve de passar por todas essas coisas.

ConJur — Consegue citar alguma dessas lições que tenha considerado mais importante?

Guilherme Nucci — O Supremo entendeu que os agravantes e atenuantes afetam a pena em um sexto. Já era uma jurisprudência majoritária, mas cada juiz tem um critério, porque o Código Penal não fixa.

ConJur — Qual a mudança, então?

Guilherme Nucci — A gente não tinha parâmetro. Tem juiz que entende que é um oitavo, outros entendem que deve afetar em um terço. Alguns aplicam um critério numérico, como seis meses ou um mês.

ConJur — É possível dizer que a interpretação do Supremo no julgamento do mensalão permitiu certa flexibilização da valoração das provas? 

Guilherme Nucci — Não vejo assim. O que eu vejo é que o Supremo teve de agir como um juiz age, de valorar a prova pela primeira vez, sem filtragem de nenhum órgão judiciário antes. A prova indiciária está prevista em lei. Os indícios são provas indiretas. O que o ministro deixou claro é que estamos usando, no caso ali, a prova indiciária, que é usada também para outros casos, num roubo simples, num furto. E que a gente não tem necessariamente de usar para condenar só a prova direta — aquela em que pessoa que viu o crime diz: “Foi assim”. Então, na verdade não houve flexibilização.

ConJur — O senhor acha que o caso trouxe à tona aquele sentimento de punir os réus por causa dos cargos que ocupam ou pelo que representam na sociedade?

Guilherme Nucci — Não acredito nisso, sinceramente. Como é um julgamento envolvendo personalidades importantes da República, geralmente baixa esse espírito nas pessoas ligadas aos réus, até mesmo nos seus defensores, dizendo: “Não tem prova; os juízes estão julgando de maneira política”. Mas não creio nisso, sinceramente. Ali é um conjunto de provas, cada um analisa de acordo com o seu convencimento, de acordo com sua convicção própria. O sistema processual penal permite que o juiz forme a sua convicção livremente. Não li os autos, então não posso dizer se há prova do crime ou não, mas não acredito que os ministros tenham tido motivação política no julgamento. Pelo que acompanho, os julgamentos do STF, pelo menos em matéria penal, são sempre bastante técnicos.

ConJur — O fato de se ter uma corte suprema julgando uma ação penal originária influencia nessa conta?

Guilherme Nucci — Na verdade, isso envolve o problema da prerrogativa de função, ou do foro privilegiado. Sou contra. Não vejo nenhum sentido em qualquer autoridade ter direito a um foro específico, especial. Acho que deputado, senador, juiz, promotor, seja quem for, tem que ser julgado por um juiz de primeiro grau. Daí ele tem direito a recurso para o tribunal, depois para o Superior Tribunal de Justiça e, se for o caso, para o Supremo. Como qualquer réu.

ConJur — Mas isso não seria uma garantia social, por causa do cargo que a pessoa com prerrogativa de foro exerce?

Guilherme Nucci — Ora, quem vai para a cadeia não é o cargo, é a pessoa, não é? Em matéria penal não existe julgamento de cargo, existe o julgamento da pessoa, de quem cometeu o crime. Não vejo nenhuma subversão de hierarquia. E vamos ponderar: se um presidente da República, um ministro, um deputado pode se sentar no primeiro grau na Justiça Trabalhista, na Justiça Civil, porque na esfera penal a questão não pode ser resolvida pelo primeiro grau?

ConJur — Passa pela questão de que talvez o juiz de primeiro grau tenha menos qualidade técnica, e por isso alguém com um cargo de representação na República deva ser julgado por uma corte qualificada?

Guilherme Nucci — Não tem a ver com o fato de o Supremo julgar melhor ou pior. Tem a ver com o fato de que todos os brasileiros são iguais. Por isso o correto é que um juiz de primeiro grau tivesse julgado o mensalão, não o Supremo. 

ConJur — Alguns réus tentaram.

Guilherme Nucci — Sim, mas veja: por que no mensalão houve grita? Isso num caso de repercussão vira um problema, mas quando não tem, ninguém fala. Mas se quer mudar isso, é simples: muda a lei. Quer desmembrar? Vai lá no Congresso e muda a lei e diz que acabou a conexão quando há uma pessoa que não tem foro privilegiado.

ConJur — Mas não tem aquela questão de que, com o foro especial, o réu tem menos possibilidade de recurso?

Guilherme Nucci — Essa é uma questão interessante que meus alunos vivem me perguntando. Todo réu tem direito ao duplo grau de jurisdição, mas acontece que todo princípio constitucional tem sua exceção. E se você quer um benefício que outros não têm, deve abrir mão de alguma coisa. Os detentores de foro privilegiado, quando fizeram a Constituição Federal, já sabiam que qualquer deputado, senador, presidente, ministro ia ser julgado pela mais alta corte de Justiça e que dali não teriam para quem recorrer. E toparam. É um jogo político. E todo mundo sabe as regras do jogo, ninguém ali é criança.

ConJur — E agora querem fazer o jogo de novo.

Guilherme Nucci — Agora que foram julgados, depois de 25 anos de Constituição, alguém vem dizer assim: “Eu quero duplo grau. Qualquer réu aí de primeiro grau tem direito a recorrer, por que eu não?” Muito simples: porque o coitado do assaltante, que roubou ali na esquina, vai ser julgado por um juiz de primeiro grau — que, para você, que tem foro privilegiado, não serve. Aí, ele vai recorrer para o tribunal; e ele pode chegar ao Supremo, por grau de recurso. Você, não. Você já começou na mais alta instância. Você escolheu esse sistema. As regras estão postas há 25 anos. Reclamar disso agora é sofisma. Só isso.

ConJur — Outro argumento a favor da prerrogativa de foro é para evitar a contaminação política da decisão. Uma crítica muito feita ao Ministério Público é a perseguição a ocupantes de cargos políticos. Aquela mentalidade do “vamos denunciar, é um ‘figurão’”.

Guilherme Nucci — Uma das argumentações realmente é essa: levando para a cúpula eu evito que o julgamento seja contaminado, evito acusações levianas etc. Mas se editássemos uma norma razoável, dizendo que as acusações devem ter tais fundamentos, responsabilizando pessoalmente o autor de uma denúncia leviana, as coisas engrenariam. Poderíamos fazer uma espécie de contrapeso. Tira o foro privilegiado, mas põe uma responsabilidade maior em quem faz a denúncia e em quem a recebe. A razoabilidade é o que deve imperar. O fato de a denúncia ter de ser feita num órgão de cúpula é que existe, naturalmente, uma filtragem maior. É uma realidade.

ConJur — Pune-se demais no Brasil, ou em São Paulo? O que se discute agora, na reforma do Código Penal, por exemplo, é o aumento das penas dos crimes de perigo abstrato, ou aumentar para o tráfico de drogas e aliviar para o uso.

Guilherme Nucci — O levantamento que eu tenho, dos recursos que me chegam, é que a gente só julga seis crimes: tráfico, homicídio, roubo, furto, estelionato e estupro. E metade disso é tráfico. Aí te pergunto: precisamos ter não sei quantos milhares de tipos penais? Não usam. Pune-se demais? Pune-se, nada. Que perigo abstrato é esse que está sendo punido? Pega todos os crimes de perigo abstrato do Código Penal e vê se estão sendo punidos. Aliás, pega todos os crimes de perigo.

ConJur — E que crimes são esses?

Guilherme Nucci — Inundação, naufrágio, incêndio, omissão de socorro, abandono de incapaz, maus tratos, bla bla bla. Bota na mesa, vê quantos estão sendo punidos. Não existe, é mentira. Não tem excesso punitivo. Mas aí, o que eu posso fazer se a sociedade vive com cocaína no bolso e arma na cintura? Pune-se demais? Não. O que eu vejo é um excesso de leis inúteis, que podiam nem existir.

ConJur — Tráfico, por exemplo, que o senhor mencionou, tem uma pena muito pesada?

Guilherme Nucci — Olha, até acho que para o traficante de primeira viagem pode até ser pesado cinco anos. Mas se você pensar no sujeito que pratica tráfico pesado, se organiza, se arma, distribui, é preso com 30 quilos, corrompe, aí tem que punir mesmo. E cinco anos é até pouco. Droga é pesado, corrompe o sistema, fere a saúde pública.

ConJur — Mas existe a demanda.

Guilherme Nucci — Evidente. Concordo plenamente, isso é um problema social grave. Não é só olhar o caráter criminal. Tem quem compre. A celeuma toda não vai ser resolvida só na esfera penal. Mas nisso eu não tenho opinião formada. Não tenho mesmo. Eu acho, sinceramente, que na esfera penal propriamente dita o tráfico tem que ser punido. A única coisa que não concordo é o usuário que não cumpre a pena alternativa não possa ser apenado. Ele foi pego duas vezes fumando maconha e levou duas advertências. Na terceira acontece o quê? Outra advertência? Tinha que ter uma postura mais dura do Estado para esses casos.

ConJur — Mas o que acontece é que o usuário é autuado como traficante.

Guilherme Nucci — Assim que saiu a lei eu escrevi isso no meu livro de tóxicos, sobre as leis penais especiais. Disse o seguinte: “Sabe o que vai acontecer com essa história de o usuário não ir mais para a cadeia? Os delegados vão começar a autuar todo mundo por tráfico”. Dito e feito. E por que o delegado vai amenizar? Pega o cara com cinco cigarros de maconha, ele que prove que é usuário.

ConJur — A coisa se inverte, não é?

Guilherme Nucci — Exatamente. Porque quanto mais você ameniza um lado e carrega o outro, a distorção fica muito grande. Um não vai para a cadeia de jeito nenhum e o outro vai sempre, e o que acontece é que a polícia nunca vai te enquadrar no lado de baixo, porque aí não faria sentido o trabalho dela.

ConJur — E no caso dos crimes de tráfico essa inversão tem acontecido com frequência?

Guilherme Nucci — É patente. No TJ julgamos isso aos montes. A polícia autua, o MP acusa e nós temos de desqualificar. No caso da lei do tráfico ficou esquisito porque carregar a droga é tráfico, mas carregar a droga para uso, não. Então o acusado é quem tem de provar o uso para desqualificar o tráfico.

ConJur — Então é a lei que inverte o ônus da prova?

Guilherme Nucci — Exatamente. O tráfico é que tinha que ter a finalidade: “Carregar droga para comercializar”. E aí se não fica provada a intenção de vender, de traficar, cai automaticamente para o uso. Mas hoje, pela lei, se você carrega a droga, mas não consegue provar que é para consumo próprio, é condenado por tráfico.

ConJur — E aí é aquela velha ideia de que a polícia prende e o Judiciário solta.

Guilherme Nucci — Mas essa é velha mesmo. A Justiça não tem o papel de prender. O papel dela é o de soltar também. Não é só um lado. Só que o papel da polícia é o de prender. Ela trabalha para prender. O juiz, não.

ConJur — Mas também existe aquela noção de que o Judiciário brasileiro é pró-réu. O ministro Joaquim Barbosa já falou isso algumas vezes.

Guilherme Nucci — São frases de efeito que mexem com a estrutura para que as pessoas discutam. Vale para uma conversa numa mesa, mas eu não acredito na generalização disso.

ConJur — O preso no regime fechado ganha o direito de progredir, mas não há vagas no semiaberto. Ele deve esperar no fechado ou ir direto para o aberto? 

Guilherme de Souza Nucci — A minha câmara tem duas posições. Uma é dar um prazo para ele passar para o semiaberto. E a segunda posição é, se o juiz der originalmente o semiaberto, aí ele não fica nem um dia a mais no fechado. Porque tem isso também: a sentença é para ele ir para o semiaberto, mas, como não tem vaga, ele vai para o fechado. Isso está completamente errado.

ConJur — E ele passa a ocupar uma vaga no fechado.

Guilherme Nucci — Essa é uma questão absurda. A pergunta que eu sempre faço aos meus alunos: por que não falta vaga no fechado? Não amontoa? Por que não abre a colônia e joga mais um? Por que no semiaberto tem número limitado de vagas e no fechado não? São coisas engraçadas, não é? Então, amontoa todo mundo na colônia. “Ah, mas aí vira bagunça.” O que significa então que o fechado vira bagunça e o Executivo está sabendo que vira bagunça, e que está uma bagunça. Ou vai me dizer que o fechado está totalmente organizado e nunca falta vaga? Então porque o Estado não investe no semiaberto? Por que o estado de São Paulo, especialmente São Paulo, não tem nenhuma casa de albergado? O regime aberto é hoje uma impunidade por causa disso. Vai todo mundo pra casa.

ConJur — O que deve ser feito, então, com o condenado que progride, mas não acha vaga?

Guilherme Nucci — Tem que ir para o aberto direto. Está no fechado, ganha o direito, defiro. Não tem vaga, mas o que o preso tem com isso? O que é que o indivíduo tem com a inépcia estatal? “Ah, ele que apodreça no fechado porque a sociedade também não tem nada com isso.” Mas foi a sociedade que elegeu o governo. Então alguém tem que ser responsabilizado por esse indivíduo ter ido para a rua antes da hora. E se ele matar, estuprar, fizer acontecer, a culpa é do governante. A culpa não é do desembargador que deferiu o Habeas Corpus para ele ir para o regime aberto. É preciso que amanhã, quando esse indivíduo delinquir de novo porque ele não estava preparado para ir para o aberto, que todo mundo se reúna e fale: “Culpa de quem? Do Executivo”.

ConJur — Mas tem o juiz que manda ele continuar preso.

Guilherme Nucci — Tem que parar com essa história de “eu sou desembargador justiceiro, eu tenho que fazer justiça de qualquer jeito e mandar esse cara continuar no regime fechado. A sociedade não pode pagar essa conta, e se não tem vaga no semiaberto, fica no fechado”. Fazendo isso, estou resolvendo um problema do Executivo. Eu sou juiz, não tenho que resolver isso, tenho é que aplicar a lei. E a lei fala que ele tem de ir para o semiaberto, então ele tem de ir para fora da cadeia. Ele tem direito de estar numa colônia penal. Se não tem vaga, vai para um regime melhor, não pior. É meio que óbvio. Uma argumentação: se eu vou para um hotel e pago o quarto de luxo, mas não tem vaga, o hotel vai me mandar para a suíte presidencial, o regime aberto, ou para o standard, o regime fechado?

ConJur — No caso da saúde pública, também se discute se cabe ao Judiciário decidir pelo Executivo.

Guilherme Nucci — Até hoje. “Eu preciso trabalhar, preciso botar meu filho na creche. O Estado prometeu. Tá aqui do lado a creche, do meu lado. Não tem vaga”. Entra na fila. Fila de creche, fila de hospital. Aí o que acontece? Eu me lembro que era juiz da Fazenda Pública na época do problema das creches. Era liminar em cima de liminar para botar criança na creche. O que é que o Executivo reclamou? Que o Judiciário está se metendo nos negócios do governo. Com a saúde foi a mesma coisa. O sujeito chegava lá dizendo: “Estou morrendo, preciso de tratamento”. Eu dava a liminar: “Estado, paga o remédio para esse sujeito”. Aí vinha mais uma discussão: “A jurisdicionalização da saúde pública. Os juízes querem comandar a saúde pública do estado”. Onde o juiz bota a mão firme para o Executivo trabalhar, irrita.

ConJur — É o mesmo problema com saúde, creche e presos...

Guilherme Nucci — O mesmo problema. Agora, se vamos chegar naquele ponto “mas o Estado não pode fazer tudo”, então vamos parar e discutir tudo de novo, porque alguma coisa está errada. Eu prometo tudo e não entrego nada, e ainda tem alguns que dizem que está certo em não dar. Mas é simples: vamos mudar as regras, as leis, a Constituição e dizer que não temos mais direitos. O que eu não me conformo é botar o filho de um na creche e o do outro, não. Isso é horroroso. Na minha área, o que eu posso fazer para as pessoas terem direitos iguais, eu faço.

ConJur — O ministro Joaquim Barbosa recentemente falou na ideia de que o prazo prescricional só deveria contar para a investigação. Segundo ele, depois que o inquérito chega ao Judiciário e vira ação penal, acabaria o prazo e nunca prescreveria. É viável?

Guilherme Nucci — Não. O réu não tem que arcar com o peso da máquina do Judiciário. A prescrição existe porque o Estado é ineficiente. Se o Judiciário leva 20 anos para julgar, o que o réu tem com isso? O problema da máquina é a efetividade, um processo não pode se arrastar por milênios. A prescrição atrapalha? Vamos reformar o Regimento Interno do STF, que está muito desatualizado, vamos reformar algumas leis penais e processuais, para readaptar, porque o Código Penal é de 1941. Mas tenha certeza: mudar lei não muda mentalidade.

ConJur — Tem de ver os efeitos da lei na prática, não é?

Guilherme Nucci — A lei não muda a prática. Não é “muda a lei, muda o mundo”. A lei ajuda, mas especialmente quando ela muda em face da realidade, não quando ela muda em um mundo fictício. Se eu implantar um código suíço no Brasil, o Brasil não vai virar a Suíça. Mas é evidente que se você pega um caso de quase 40 réus e joga para o Supremo julgar, nem um juiz de primeiro grau daria conta de julgar isso rápido, quem dirá um colegiado.

ConJur — No caso do mensalão foram meses de debates, fora os anos de instrução.

Guilherme Nucci — Isso não é por acaso. Todo mundo sabe que demora e todo mundo quer o foro privilegiado. As coisas não vão se resolver tão cedo enquanto o Brasil não “elasticizar” um pouco mais essas prerrogativas. A gente precisa ser mais americanizado nesse ponto. Lá, sim, há democracia plena nesse aspecto. Lá o presidente da República sentou no banco dos réus. O Bill Clinton teve de se sujeitar a uma pronúncia, naquele caso da Monica Lewinski. Teve de se justificar perante o júri sob o risco de ser condenado por perjúrio. Quando isso vai acontecer no Brasil? Isso é democracia, o resto é conversa.

ConJur — Mas há abuso com o uso de recursos deliberadamente protelatórios?

Guilherme Nucci — Vamos diferenciar. Recurso protelatório é uma coisa, ação protelatória é outra. É natural que os advogados, em geral, quando percebam algum flanco de petição, vão por esse caminho. Se eu fosse advogado, faria a mesma coisa. Estou trabalhando pelo meu cliente. O advogado que não faz isso é cobrado depois. Nem gosto de falar que o recurso é protelatório, porque ele está previsto em lei. E se está em lei, não pode ser chamado de protelatório. É direito. Ou reforma a lei e tira o recurso. Mas se eu, de fora, como juiz, enxergo o recurso como uma coisa sem efeito, apenas com a intenção de atrasar a conclusão do caso, eu tiro o recurso, não conheço dele. Simples. Não preciso fazer alarde, dar bronca no advogado. Enquanto existe o recurso previsto em lei, não posso acusar o advogado e falar “olha, está protelando!” 

ConJur — A ministra Eliana Calmon, quando ocupou a Corregedoria do CNJ,  costumava falar nos bandidos de toga, que a corrupção tomou conta do Judiciário.São estes os problemas do judiciário?

Guilherme Nucci — Criou-se uma frase que a imprensa gostou e captou. Mas eu não tenho muito receio de frases de efeito, não. Elas têm o seu valor. Quando você faz uma afirmação muito dura e ela repercute dá uma balançada no jogo, dá uma mexida na areia do fundo do lago. Não é ruim, de todo. Se você fala, por exemplo, que “juízes sentenciam mal”, todos vão falar: “Mas que absurdo!” Mas vai acordar muita gente. “Por que foi falado isso? Será que existe esse problema? Será que sentencio mal? Será que sou venal?”. Do nada, essas frases não vêm. Mas é mais uma questão de autocrítica, porque elas não têm nenhum efeito prático.

ConJur — O mensalão também trouxe à tona o tema da prescrição da pretensão punitiva. Qual o problema? É a lei processual penal que permite o alongamento indefinido do processo?

Guilherme Nucci — Não creio que a culpa seja da lei. O ponto fundamental aí é máquina emperrada. A gente tinha que ter mais juízes, mais funcionários, não tem outra alternativa.

ConJur — Isso não pulverizaria a jurisprudência?

Guilherme Nucci — Mas aí é o de menos. O importante é andar. E aqui em São Paulo também tem a questão correcional: a máquina está emperrada e o juiz é obrigado a trabalhar contra a máquina, mas também tem o juiz que não trabalha. Então a atividade do CNJ, da Corregedoria-Geral é importante. 

ConJur — O que acha da atuação do CNJ?

Guilherme Nucci — Não acompanho diretamente, não sei internamente como as coisas funcionam, mas pelo que leio, o impacto tem sido positivo. Juiz que trabalha não é perturbado pelo CNJ. O mau juiz, de fato, deve responder, deve ser perturbado. Mas é claro que a gente tem de ponderar. Fui assessor da Corregedoria aqui em São Paulo em 2000 e 2001. A gente fiscalizava bem, perguntava por que não estava trabalhando. E o juiz respondia: “Porque estou sem funcionário”. E aí o que se pode fazer? Nada. Precisamos ponderar para que não haja injustiça.

ConJur — A questão é estrutural.

Guilherme Nucci — Temos que aparelhar melhor o judiciário, e aí cobrar o juiz. Dou os funcionários, melhoro a estrutura da vara, mas agora quero as coisas funcionando. Se você não pode dar a estrutura, não pode cobrar. E aí a máquina emperra.


Fonte: Disponível em: <www.conjur.com.br-juiz-substituto-tj-sao-paulo> Acesso em: 2 junho 2013.